Tuesday, November 10, 2009

Auto-Retrato

~ It echoes in my brain
I didn't mean it ~


Propositadamente sentada de costas para o céu, fito o papel que jaz no meu colo e delineio mentalmente as rugas amachucadas, resultado manifesto das amarguras que brotam do meu âmago. Oscilando entre um misto de humildade e arrogância, o antagonismo das emoções provoca olhares desconfiados projectados pelo verde de mim, revelando desprezo pela folha amarrotada e, simultaneamente, uma vontade incontrolável de a deslizar por entre os meus dedos desassossegados.

Consciente de que o tempo de resistência escasseia, guio a mão hesitante ao inócuo pedaço de nada e ergo-o ao nível dos meus olhos: sinto a macieza do papel acariciar a minha pele, despertando os meus sentidos e apagando paulatinamente a razão que ainda me domina; desprovida de consciência, procuro o pedaço de carvão por entre a relva seca.

Num duro e cruel contraste, o preto, ávido por se destacar, ganha imediata forma contra a superfície lisa sobre a qual desliza vagarosamente; e sob o meu olhar apagado, mas atento, figuras indecifráveis começam a calcar a folha, trilhando ondas e curvas que esborratam o branco de suja imperfeição.

É quando a minha mão, esgotada e dormente, solta a longa tira de carvão, que dou por mim a realmente observar a figura disforme que agora vive no papel, importunando assim a minha rotineira apatia: a evidente imperfeição incomoda-me, assim como me aflige o facto de ter consciência de que fui eu quem a enalteceu, distorcendo cada linha do retrato e tornando-o tristemente assustador para qualquer curioso que se sinta tentado a perscruta-lo.

Aterrorizada com a minha própria audácia, com a rara manifestação dos meus pensamentos permanentes, mas astutamente ocultos, rasgo furiosamente a folha de papel e atiro as farripas sobreviventes ao vento, repelindo-as de perto de mim. Nada consegue ser tão desgastante quanto ver o que vi ou pensar o que penso, e é por isso que me levanto, abandonando a relva, e me preparo para voltar a encobrir cada perturbação que a folha despertou.

Misturo-me então com a multidão, lançando sorrisos e olhares falsamente rejuvenescidos, acenando alegremente para os desconhecidos e esforçando-me para ignorar aquilo que a minha alma continua a berrar num desesperado, mas ignorado, pedido de atenção: nada, nem a mais forte rajada de vento, será capaz de apagar a imagem que tenho de mim.


- Cats

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